domingo, 24 de junho de 2007

A GENTE SE ACOSTUMA


Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fim de semana e a não ter outra vista que não as janelas ao redor
E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora
E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender cedo a luz
E á medida que se acostuma, esquece o Sol, esquece o AR, a amplidão...

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora
A tomar o café correndo porque está atrasado
A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem
A comer sanduíche porque não dá para almoçar
A sair do trabalho porque já é noite
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: "Hoje não posso ir".
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo, o que deseja e o de que necessita
E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar.

A gente se acostuma à poluição
Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.
À Luz artificial de ligeiro tremor.
Ao choque que os olhos levam na luz natural.
Às bactérias de água potável.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento Ali, uma revolta acolá.
Se a Praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo.
Se o cinema está cheio, a gente senta na 1ª fila e torce um pouco o pescoço.
Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana
E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito, porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.
A gente se acostuma para poupar a vida
Que aos poucos se gasta, e que se gasta de tanto se acostumar, e se perde de si mesma...

(Clarice Lispector)

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